terça-feira, 9 de junho de 2020

PANDEMIA EXPLICITA A INEFICIÊNCIA DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Por: José dos Santos Souza

     Desde os anos 1990, tem sido fortemente propagada a ideia de que tudo que é público funciona mal e a solução seria transferir para a iniciativa privada a gestão dos serviços públicos, por meio de arranjos institucionais como as Organizações Sociais (OS). Esta é a base ideológica da reforma administrativa contida no receituário neoliberal. Entretanto, as experiências de governança orientadas por este receituário nunca apresentaram resultados que confirmem a eficácia da gestão privada dos serviços públicos. 

     Ao contrário do exemplo de eficiência atribuída à gestão privada, o que se vê a partir das experiências de gestão das OS é a redução da capacidade de atendimento e o aumento da ineficiência do serviço prestado pelas instituições públicas geridas pelas OS. A Pandemia do COVID-19 está servindo para evidenciar que a gestão dos serviços públicos pelas OS, além de flagrante fracasso, se transformou-se em foco de corrupção que perversamente facilita o desvio de verbas públicas para o capital privado. Esta situação não foi gerada pela Pandemia. Na realidade, Pandemia só a tornou mais visível aos olhos da população.

     As OS são um tipo de associação privada regulamentada pela legislação brasileira, com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de gestão de serviços públicos. As OS são instituídas a partir da obtenção de um título de qualificação outorgado a uma entidade privada. A partir daí, a instituição privada passa a ser considerada apta a receber determinados benefícios do poder público, que vão desde dotações orçamentárias e/ou isenções fiscais até subvenção direta, para a realização de seus fins. Esse modelo de arranjo institucional tem sido adotado por inúmeros governos das esferas federal, estadual e municipal. A gestão da saúde e da educação, justamente as políticas sociais que mais movimentam recursos públicos, são as áreas de maior incidência de privatização da gestão pública por meio de contratos de parcerias do Estado com OS.

     A ideia de que a gestão privada seria a solução para a gestão eficiente de órgãos públicos tem sua origem nas proposições da “Nova Gestão Pública”, uma das estratégias de superação do modelo de gestão pública orientada pela vertente keynesiana de regulação social por outro modelo orientado pelo receituário neoliberal. Trata-se de uma estratégia de ação burguesa para redefinir a relação entre o Estado e a sociedade civil com vistas à reorientação do uso do fundo público. Se antes o fundo público era visto como um patrimônio social a serviço do desenvolvimento socioeconômico e cultural do conjunto da sociedade, agora, de acordo com a perspectiva da reforma do Estado, o fundo público passa a ser visto como um patrimônio que deve ser utilizado em benefício do desenvolvimento econômico dos grandes empreendimentos capitalistas. Se antes o desenvolvimento socioeconômico dos sujeitos sociais (trabalhadores e empresariado) era visto como razão do desenvolvimento da nação, agora o que se considera como tal é a prosperidade dos empreendimentos bem sucedidos na perspectiva mercantil.

     Para a construção do consenso em torno desta mais recente concepção do papel do Estado e do uso do fundo público, foi acionada verdadeira campanha de negativa acerca da legitimidade do serviço público no atendimento de demandas sociais como se receber serviços do Estado gratuitamente ou pior, receber dele auxílios financeiros fosse imoral e, portanto, inaceitável. A pedagogia política acionada para este fim foi a propagação da ideia de que tudo que é público funciona mal e a solução para isto é a privatização dos serviços públicos. Acusaram a gestão pública de ser demasiadamente burocrática, dispendiosa e ineficiente na obtenção de resultados.

     Como solução para esta suposta ineficiência dos serviços públicos, foram acionadas proposições de uma “Nova Gestão Pública” menos burocrática e, portanto, mais eficiente, uma vez que deveria estar focada em resultados. Tomando como referência a suposta eficiência da gestão das empresas privadas cujo foco são os resultados objetivos de valorização de capital, passou a propagar-se a ideia de que a eficiência da gestão pública deve ter como foco os resultados e, para isso, deve-se adotar as mesmas estratégias das empresas privadas. A esta perspectiva em que todas os entraves que condicionam a eficiência do serviço público e suas respectivas soluções restringem-se ao campo da gestão, denominamos de gerencialismo. Conforme observado anteriormente,


Talvez a maior inovação do gerencialismo não seja a ênfase dada à eficiência, uma vez que esta característica já existia no modelo burocrático ao qual se contrapõe. Por suposto, sua maior inovação consiste na preocupação com o grau de alcance dos resultados – eficácia; e com os impactos gerados para a sociedade – efetividade (SOUZA, 2017, p. 183).
     A primeira mudança promovida nessa perspectiva gerencialista seria passar a tratar o cidadão como cliente e o órgão público como empresa de serviços. Outra mudança seria transplantar para a dinâmica da gestão pública os mesmos princípios de gestão de qualidade aplicados nas empresas privadas, de modo que a própria qualidade é concebida como o nível de satisfação do cliente. Por meio do argumento de aumento desenfreado do déficit público causado pela má gestão dos serviços prestados pelo Estado, pela corrupção e pela ausência de planejamento estratégico, são acionadas medidas rígidas de controle sobre a aplicação de recursos e a produtividade do trabalho. Estas medidas de controle são beneficiadas pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação. Na maioria das vezes, este controle está escamoteado em um conjunto de ações de gestão da qualidade, de modo que sua justificativa é sempre a garantia de melhor atendimento à população decorrente do maior controle social sobre os serviços prestados pelo Estado. A esta iniciativa chamaram de accountability:


Nessa perspectiva, para a obtenção de melhores resultados, o gerencialismo toma como referência a ideia de accountability, ou seja, a ideia de que a administração pública deve pautar-se pela responsabilidade social, imputabilidade e obrigatoriedade de prestação de contas à população. Tudo isso se daria por meio de estratégias de mensuração de resultados do serviço prestado, de modo a permitir o cálculo preciso da satisfação dos clientes por intermédio de índices estabelecidos a priori, segundo critérios da Lei de Mercado, tendo como pressuposto um conjunto de metas estabelecidas pelos governantes, segundo critérios tecnocráticos (SOUZA, 2017, p. 183).
    Mas não se pode desconsiderar que o que está no centro desta propagação do gerencialismo na gestão pública é a redução drástica do uso do fundo público em ações do Estado direcionadas ao atendimento da população com serviços de saúde, educação, assistência e previdência social etc. Esta redução drástica da aplicação de recursos nestes serviços é necessária para que haja reservas para financiar as demandas dos grandes empreendimentos privados por meio de subsídios estatais, isenção de impostos, perdão de dívidas, aquisição de bens e serviços – sem contar as falcatruas nos processos de licitação destas aquisições em que o superfaturamento e as fraudes se tornaram corriqueiros a despeito do aumento considerável do controle sobre o trabalho e a gestão do serviço público no contexto das reforma gerenciais.

     São características do gerencialismo: 1) flexibilização do direito administrativo, desregulamentação da administração pública e adoção da lógica do mercado como única referência regulatória; 2) pulverização de tipos de vínculo institucional dos servidores públicos com ênfase na terceirização e no contrato temporário de trabalho;  3) promoção da competição entre sujeitos e instituições por meio da simulação de um ambiente concorrencial, de modo a incitar a busca de melhores resultados; 4) ampliação de concessões de exploração e manutenção de serviços de caráter público por empresas privadas; 4) promoção de parcerias público-privadas; 5) terceirização de atividades meio e de gestão de órgãos públicos por meio das OS. Em síntese, poderíamos afirmar que:


Considerando o contexto sócio-histórico mais amplo, o gerencialismo é decorrência da contrarreforma burguesa para redefinir o papel do Estado e sua relação com a sociedade, com vistas na superação da crise fiscal herdada do modelo de desenvolvimento do capital baseado no regime de acumulação fordista e no modo de regulação social keynesiano. Essa crise fiscal é, na realidade, expressão da crise estrutural da ordem capitalista de produção e reprodução social da vida material [...] (SOUZA, 2017, p. 184).
     Entretanto, a promessa das reformas gerenciais de garantir eficiência, redução dos gastos públicos e maior controle social sobre os serviços do Estado nunca se concretizaram. Exemplos disto são inúmeras concessões às empresas privadas para exploração e manutenção de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos em todo o país. No caso do específico do estado do Rio de Janeiro, as concessões dos serviços de transporte coletivo para as empresas Supervia (trens urbanos) e CCR-Barcas (transporte hidroviário), por exemplo, nunca foram exemplos de eficiência. Atualmente, as iniciativas do Governo de Estado para concessão do serviço de abastecimento de água para empresas privadas que coincide com denúncias de contaminação por geosmina da água distribuída à população está longe de ser uma medida de melhoria de qualidade do serviço, tampouco de garantia de maior controle social sobre o serviço.  Na capital, o que ocorre com o sistema BRT, VLT e BRS (serviços integrados de transporte de passageiros). Isto que ocorre no Rio de Janeiro é um exemplo do que se passa em todo o país em diferentes esferas da administração pública.

     Também estão longe de ser exemplo de eficiência as parcerias público-privadas firmadas por meio de contratação de OS para a gestão de serviços de saúde e de educação principalmente. Em pleno pico da pandemia, dos sete hospitais de campanha planejados para ofertar 1.300 leitos para auxiliar no combate à Pandemia do COVID-19, apenas um deles ficou pronto a tempo, com apenas 200 leitos, e mesmo assim funciona precariamente com problemas no abastecimento de medicamentos, no número insuficiente de respiradores mecânicos, no número insuficiente de profissionais de saúde contratados etc. As OS responsáveis pelas obras, entretanto, receberam boa parte dos recursos destinados à construção das sete estruturas hospitalares temporárias planejadas. Conforme denúncias da mídia (STROZZI, 2020), há fortes indícios de desvio de verba por parte do governo de estado do Rio de Janeiro nas negociações com as OS responsáveis pela construção dos hospitais de campanha. Também vem sendo denunciado pelos trabalhadores em saúde que faltam medicamentos para o tratamento de pacientes de COVID-19 no único Hospital de Campanha em funcionamento da Cidade do Rio de Janeiro (PRADO; HAIDAR; PALHANO, 2020). Estes problemas na gestão privada de unidades de saúde pública não tiveram origem na atual crise sanitária vivida por conta da Pandemia do COVID-19. Eles já existiam antes. A Pandemia do COVID-19 só os explicita. Em 2016, por exemplo, uma denúncia de precariedade na alimentação de pacientes e falta de medicamentos e insumos hospitalares no Hospital Geral de Palmas, Tocantins:

Além da alimentação inadequada, a defensoria afirma que o hospital apresenta outras irregularidades, como a falta de medicamentos para tratamentos, fraudas para pacientes, válvulas essenciais para a realização de cirurgias, antibióticos que previnem infecção hospitalar, além dos funcionários da limpeza estarem trabalhando sem luvas e sem sacos de lixo para recolher os resíduos.
No mês de agosto deste ano, faltou alimentação para os pacientes em 19 hospitais públicos do Tocantins. Na ocasião, a Secretaria Estadual da Saúde assumiu o fornecimento das refeições que eram feitas por uma empresa terceirizada. A população também se mobilizou para arrecadar alimentos e realizarem doações e até marmitas eram vendidas na entrada do hospital (G1/TO, 2020, texto em html).
     No Rio de Janeiro, no início deste ano, em pleno verão carioca, pacientes penavam com falta de refrigeração no Hospital Municipal Pedro II (TCHAO, 2020, texto em html). Mas a situação neste hospital administrado por uma OS já esteve pior. Em 2007, uma funcionária do hospital denunciava:
É tudo muito sujo. A comida é péssima, de má qualidade, quando tem. Às vezes, não tem nem água. E as pessoas não têm dinheiro para comprar. Quem não tem acompanhante, fica jogado fora gritando: ‘Pelo amor de Deus, já está de noite e não aparece um prato de comida. Eu estou com fome’. É muito triste. Arroz, feijão jogados no chão durante horas, contou a funcionária (MIDIA INFORMAL, 2020, texto em html).
     Se observamos a realidade de inúmeros hospitais do país, sejam eles municipais, estaduais ou federais, não será muito diferente e não é de agora. Estes exemplos só confirmam que esta realidade grotesca é anterior à Pandemia do COVID-19, embora só agora tenha se tornado bem mais visível. Esta maior visibilidade do caos que marca a gestão privada dos serviços de saúde hospitalar em plena crise sanitária causada pela Pandemia do COVID-19 serve como materialidade do fracasso das proposições da “Nova Gestão Pública” de promover ampla reforma gerencial para garantir maior eficiência dos serviços públicos. Em vez de melhorar o atendimento à população, as reformas gerenciais só serviram para beneficiar ainda mais o empresariado com a ampliação dos mecanismos de escoamento do fundo público para a iniciativa privada. 

     Enfim, a estratégia da burguesia para super a burocratização do serviço público, a baixa produtividade, a má gestão de recursos materiais e financeiros e a baixa responsabilização dos gestores frente ao sistema político e à sociedade, é na realidade uma farsa. O propósito desta farsa é ofuscar a reorientação do fundo público em seu benefício. A crise sanitária que vivemos por conta da Pandemia do COVID-19 está tornando explícita a farsa da estratégia burguesa para se apropriar exclusivamente do fundo público em detrimento do atendimento das demandas sociais. Nesse caso, cabe aquela máxima em se diz: “o rei está nu!”

Referências:

G1/TO. Comida para pacientes em coma está em falta no HGP, diz Defensoria. G1/TO, 18/11/2016, 22h50 - Atualizado em 18/11/2016, 22h50. Disponível em: http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2016/11/comida-para-pacientes-em-coma-esta-em-falta-no-hgp-diz-defensoria.html , acesso em 09/06/2020.

MÍDIA INFORMAL. Às vezes, não tem nem água” diz funcionária do Hospital Pedro II, no Rio.  Mídia Informal, 14/12/2017. Disponível em: https://midiainformal.wordpress.com/2017/12/14/as-vezes-nao-tem-nem-agua-diz-funcionaria-do-hospital-pedro-ii-no-rio/ . Acesso em 09/06/2020.

PRADO, Anita; HAIDAR, Diego; PALHANO, Gabriela de. Funcionários do hospital de campanha do Maracanã dizem que falta de medicamentos leva pacientes à morte. G1, RJ1, Rio de Janeiro, 21/05/2020, 13h22. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/21/hospital-de-campanha-do-maracana-e-entregue-mas-funcionarios-dizem-que-falta-de-medicamentos-levam-pacientes-a-morte.ghtml . Acesso em 09/06/2020.

SOUZA, José dos Santos. Gerencialismo. In: SEGENREICH, Stella Cecilia Duarte (Organizadora). Organização institucional e acadêmica na expansão da educação superior: glossário. Rio de Janeiro: Publit, 2017. p. 54-58.

STROZZI, Walter. Entenda a polêmica envolvendo a compra de respiradores. ACidadeON, Araraquara, 4/5/2020, 18:09. Disponível em: https://www.acidadeon.com/araraquara/cotidiano/coronavirus/NOT,0,0,1515120,entenda+a+polemica+envolvendo+a+compra+de+respiradores.aspx . Acesso em 09/06/2020.

TCHAO, Eduardo. Pacientes sofrem com calor no Hospital Pedro II, em Santa Cruz, sem ar-condicionado. G1/RJ1, 01/02/2020, 12h40. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/01/pacientes-sofrem-com-calor-no-hospital-pedro-ii-em-santa-cruz-na-zona-oeste-sem-ar-condicionado.ghtml . Acesso em 09/06/2020.