Prof. Dr. José dos Santos Souza (UFRRJ)
A Pandemia do COVID-19 leva Escolas privadas e redes públicas municipais, estaduais e federal de ensino a recorrem à educação à distância para garantir o cumprimento do ano letivo e isto traz à tona o debate sobre a eficácia desta medida e suas consequências para o trabalho docente e para a aprendizagem dos estudantes.
Fonte da foto: https://braziljournal.com/na-educacao-a-distancia-ser-tem-vitoria-sobre-a-kroton |
No Diário Oficial da União de 1º de abril de
2020, foi publicada a Medida Provisória nº 934. Nela, o Governo Bolsonaro e
estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da Educação Básica e do
Ensino Superior, diante da necessidade de enfrentamento da pandemia do
COVID-19.
A MP nº 934/2020 determina que os
estabelecimentos de ensino da Educação Básica fiquem dispensados, em caráter
excepcional, da obrigatoriedade de observância do mínimo de 200 dias de efetivo
trabalho escolar previstos na LDB, a Lei nº 9.394/1996, desde que cumprida a
carga horária mínima de 800 horas/aula anuais, observadas as normas definidas
pelos respectivos sistemas de ensino.
Na prática, esta Medida Provisória não só
legitima as iniciativas das escolas privadas e de inúmeras redes públicas de
ensino de recorrerem a práticas que chamam de Educação à Distância (EaD) como,
indiretamente, induz às instituições de ensino a recorrerem a artifícios dos
mais variados para que as 800 horas/aulas sejam cumpridas, ainda que não seja
necessário cumprir 200 dias letivos.
É claro que existem instituições públicas ou
privadas que estão buscando empreender um trabalho sério para atender seus
estudantes neste período de pandemia. Mas o que se vê de modo geral são
exigências aos professores para que cumpram o programa repassando o conteúdo
por meio virtual. Para isto, os professores são pressionados a valerem-se desde
recursos mais corriqueiros, como e-mails, grupos de WhatsApp, grupos do
Facebook etc., até aos mais sofisticados, como a Plataforma Moodle ou outros
tipos de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA), web conferências,
formulários on-line, etc.
Obviamente, os trabalhadores da educação vêm
reagindo de forma bastante variada a estas estratégias, pois elas normalmente
partem de seus empregadores e não dos professores ou dos estudantes. A primeira
questão posta consiste na insuficiência de condições técnicas e operacionais
para a realização destas estratégias, sem contar os problemas de acesso a
equipamentos de informática adequados por parte de estudantes e professores,
não só de escolas públicas, mas também de parte significativa de estudantes e
professores de escolas privadas. A segunda questão posta se refere ao
sobretrabalho dos docentes, que passam a dedicar muitas horas preparando
material para disponibilizar aos estudantes por meio virtual, sem ter muita
clareza de como essas horas serão consideradas pela instituição de ensino. A
terceira questão consiste no impasse de transformar atividades planejadas para
o ensino presencial em atividades de EaD sem qualquer orientação pedagógica,
sem equipamentos adequados, utilizando-se de seus próprios recursos domésticos
e dos estudantes para concretizar o que se espera.
Neste contexto, a MP nº 934/2020 tem
efeito nefasto, como quase todas as medidas governamentais tomadas desde 2017
no campo educacional, pois ela torna legal as medidas que já vinham sendo
tomadas por escolas privadas e por várias redes de ensino no sentido de obrigar
os professores a repassarem o conteúdo curricular a qualquer custo, de modo
improvisado, sem utilização dos métodos ou ferramentas corretas, sem condições
técnicas e operacionais adequadas, com resultado duvidoso, inseguro ou de má
qualidade. O que se vê, portanto, é a configuração de um verdadeiro armengue
pedagógico, pois é bem provável que estas estratégias jamais se efetivem em uma
prática pedagógica eficiente, uma vez que tanto o conteúdo curricular, as
estratégias de ensino e aprendizagem e as estratégias de avaliação de
desempenho não foram pensadas para a EaD, mas para a educação presencial. O
resultado deste armengue pedagógico só pode ser uma ação educativa distorcida,
sem qualquer critério ou comprometimento com a qualidade de ensino, que na melhor
das hipóteses pode funcionar como meio de repasse de conteúdos curriculares
para estudantes, caso estes tenham acesso aos meios operacionais adequados
(equipamentos compatíveis e acesso à internet de qualidade). Ainda assim esta
prática não ultrapassaria a perspectiva enciclopedista[1], que muitos vulgarmente chamam de
“conteudismo”, de modo que tal situação configura um arremedo de EaD, o que não
passa de uma prática educativa precarizada.
Mas o que chama a atenção é que, a despeito
disto, as famílias de classe média, cujos estudantes em sua maioria estão
matriculados em escolas privadas, recebem esta medida com certa positividade.
Quando questionam, o fazem de acordo com sua típica mesquinhez, limitando sua
crítica à disparidade entre a quantidade de horas que seus filhos são atendidos
por esta EaD precarizada e a quantidade de horas/aula contratada e paga por
eles para a modalidade presencial. Tanto que já existe um movimento destes pais
para que os estabelecimentos privados reduzam as mensalidades escolares deste
período de pandemia em pelo menos um terço como forma de compensação. Isto
ocorre porque as camadas médias da sociedade são mobilizadas por uma concepção
pragmática, imediatista e interessada de formação humana, incentivadas pelas
ideologias da sustentabilidade, do empreendedorismo e da empregabilidade, de
modo que a educação escolar é vista por eles como meio para alcançar melhores
colocações no mercado de trabalho, em busca de relativa autonomia financeira,
enfim, em busca de se dar bem na vida.
Foto: Marcos Santos
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Na maioria das vezes, não é preocupação
destas famílias que seus filhos tenham uma formação omnilateral, a ponto de
torná-los sujeitos de uma ruptura epistêmica com o ideal enciclopedista, com a
perspectiva pragmática, imediatista e interessada de formação humana, que
considera válido apenas os conhecimentos que contribuem para a geração de valor
e inválidos os conhecimentos que formam o homem para compreender a si como
sujeito histórico, para além das demandas imediatas da valorização do capital.
Esta polêmica não está colocada para famílias de classe média e classe
dominante. O que lhes importa é um suposto sucesso individual que acreditam
alcançar para seus filhos, tornando-os mais competitivos no mercado e,
portanto, mais capazes para conquistar melhores condições de sobrevivência em
detrimento de tantos outros, numa sociedade competitiva e desigual. Mesmo em
momentos de exigência de isolamento como agora, nem que seja por meio de uma
EaD precarizada, não conseguem renunciar aos objetivos e metas de sua
perspectiva pedagógica. Afinal, cada um busca para si a pedagogia que lhe
conforma.
Esta mesma perspectiva também mobiliza
grande parte das famílias menos favorecidas que matriculam seus filhos em
escolas públicas ou mesmo em escolas privadas mais baratas, sonhando
proporcionar para seus filhos melhores condições de sobrevivência decorrentes
da escolarização. Entretanto, ao contrário da classe média e da classe
dominante que, independente da escolarização que recebem, conservam sua
condição de classe, para as famílias menos favorecidas, esta perspectiva não se
concretiza e o que é conservada, no caso delas, é sua condição de pobreza. Se
para a classe média é classe dominante esta perspectiva pedagógica é aceitável
e de algum modo atende suas expectativas econômicas e sociais, para a vasta
maioria da classe trabalhadora, embora conformada nesta mesma perspectiva, tal
conformação à escraviza ainda mais.
Estamos falando de 48,6 milhões de
estudantes brasileiros matriculados na Educação Básica! Deste contingente,
apenas 18,3% estão em escolas privadas e 81,7% estão em escolas públicas. Em um
contexto desigual como o nosso, é óbvio que a MP 934/2020 terá efeitos também
desiguais, pois os 81,7% dos estudantes matriculados na Educação Básica, em sua
maioria, não dispõem dos mesmos recursos para usufruir da oferta de EaD, ainda
que precária, pois não dispõem nem de computadores atualizados nem de planos de
internet capazes de proporcionar-lhes as condições mínimas para uma conexão
virtual eficiente com seus professores, ao contrário da maioria dos 18,3%
matriculados em instituições privadas de ensino.
Outro aspecto que merece atenção é o fato de
que, no bojo destas ações de EaD precária, o próprio trabalho docente também
será oferecido de forma desigual. Muitos docentes de escolas públicas e
privadas não dispõem de equipamentos nem de serviços de internet compatíveis
com uma boa prática de EaD, condicionando seu desempenho. Somente os
professores mais bem remunerados terão disponibilidade de condições desejáveis
para que haja repasse de conhecimentos, ainda que em uma perspectiva
enciclopedista. Da mesma forma, somente os estudantes de escolas privadas
elitizadas, com alto custo de mensalidades, terão as condições sociais para se
submeterem ao ideal enciclopedista da perspectiva pragmática, imediatista e
interessada de formação humana. Para boa parte dos estudantes das escolas
privadas e das redes públicas de ensino essa perspectiva pedagógica só fará mal
e funcionará como uma espécie de grilhão, limitando seus potenciais cognitivos
até mesmo para a assimilação de conteúdos catalogados para serem repassados em
determinado tempo, de acordo com determinado programa de ensino.
Insensíveis a isto, tanto estabelecimentos
privados como redes públicas de ensino estão exigindo que seus docentes
transformem suas atividades planejadas para educação presencial em atividades
de EaD, sem qualquer apoio pedagógico nem auxílio para aquisição de
equipamentos. Sem contar que passarão a trabalhar mais horas, correndo o risco
de ainda terem que repor toda esta carga horária presencialmente, depois que
pandemia for superada e as atividades escolares retornarem à regularidade.
Enfim, conforme o movimento organizado dos professores vem apontando, assim
como também afirmam as principais organizações científicas da área de educação,
esta euforia de recorrer à EaD para salvar o ano letivo é uma gambiarra dos
governos e dos estabelecimentos privados de ensino para cumprir o ano letivo a
qualquer custo.
Fonte: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=86441 |
Se neste contexto de pandemia, por meio da
MP nº 934/2020, o Governo flexibilizou excepcionalmente o número mínimo de 200
dias letivos de efetivo trabalho escolar, por que também não flexibilizou
excepcionalmente a carga horária mínima de 800 horas/aula para o ano de 2020?
Esta é uma questão fundamental que este dispositivo legal suscita.
Quando a MP nº 934/2020 flexibiliza
parcialmente as exigências legais dispostas pela LDB para o cumprimento do ano
letivo, cria-se uma aparência de que a medida foi tomada para atender, ainda
que minimamente, uma demanda da sociedade civil em um momento de necessário
isolamento social. Ressaltemos que se trata de uma aparência e não de uma
efetiva realidade. Tal medida é muito mais coerente com a visão bastante
impregnada em nossa sociedade que é a de que a acumulação de capital não pode
parar. A MP nº 934/2020 parte do pressuposto de que também o serviço
educacional não pode parar, ainda que haja isolamento. Mas se refletirmos bem,
é fácil perceber que o que não se pretende parar jamais é a acumulação de
capital. Nisso reside o real sentido da parcialidade da MP 934/2020. Uma vez
que não será preciso cumprir 200 dias letivos, fica flexibilizada a incumbência
dos estabelecimentos de ensino de funcionarem por este período. Porém, quando a
exigência de comprimento de 800 horas/aula é mantida, induz-se que o serviço
educacional que antes se concretizaria nos estabelecimentos de ensino durante
200 dias de efetivo trabalho seja transferido para outros espaços que não
estes, garantindo que seu tempo de duração permaneça o mesmo, ainda que de
forma distinta daquela para a qual foi planejado (fora do tempo de efetivo
trabalho e do espaço da escola). O tempo e o espaço agora é o dos lares e não
mais dos estabelecimentos de ensino; o tempo e o espaço que antes eram livres,
agora passam a ser de domínio do capital ou do Estado. É isto que está em jogo.
Desse modo, a responsabilidade recai sobre
os professores, agora monitorados pelos estabelecimentos de ensino e pelos
pais, que lhes exigem resultados imediatos, de acordo com suas expectativas
propedêuticas[2], de perspectiva enciclopedista cuja preocupação
central é que, mesmo com o isolamento social, o conteúdo seja repassado a
qualquer custo. Na ânsia de garantir a seus filhos o acesso aos conteúdos
necessários para progredir na trajetória escolar, os pais pressionam os
estabelecimentos de ensino. Estes, por sua vez, pressionam os professores e os
professores são pressionados por sua própria consciência, muitas vezes
contaminada pela mentalidade enciclopedista combinada com certa ideia de
magistério como sacerdócio e não como força de trabalho fundamental para a
valorização do capital variável.
A resistência a esta realidade passa
necessariamente pela explicitação do que está em jogo, ou seja da disputa de
hegemonia entre concepções distintas de formação humana: a perspectiva
pragmática, imediatista e interessada de formação humana em oposição à
perspectiva omnilateral que visa a formação integral do ser humano em todas as
suas potencialidades, sem interesse na valorização de capital, mas na
valorização da vida humana. Este momento de pandemia é bastante profícuo para
evidenciamento deste conflito de interesses no campo educacional e de
demonstração do quanto este conflito corresponde a um conflito bem mais
determinante, que é o conflito de classes. O momento é de demonstrar como a
perspectiva educacional da classe média e das classes dominantes não é boa para
a classe trabalhadora, tampouco para a própria classe média.
Por isso o momento é de negar a EaD como
alternativa para o cumprimento do ano letivo a qualquer custo. O que a
sociedade precisa agora é garantir o isolamento para superar a pandemia.
Precisamos dizer não ao pacto de mediocridade em que uns fingem que ensinam e
outros fingem que aprendem. Este pacto só contribui para a manutenção da
realidade que o capitalismo construiu para todos nós. E este momento de
pandemia está tornando cada vez mais claro que o capitalismo não é eficaz na
manutenção da vida humana, portanto, sua proposta de EaD precarizada para
salvar um calendário escolar, agora referendado pela MP nº 934/2020, que
inclusive já efetivamente comprometido, também não é eficaz para garantir uma
formação humana mais igualitária, mais altruísta e, portanto, mais democrática.
Enfim, o momento é de exigir do Congresso que a flexibilização parcial da MP nº
934/2020 seja estendida à carga horária mínima de 800 horas/aula, deixando que
cada estabelecimento de ensino ou rede de ensino discuta com seus professores
as medidas a serem tomadas em relação ao período de isolamento social. Isto
tiraria dos ombros dos professores a responsabilidade de garantir 800
horas/aula em um período conturbado em que precisam garantir a sua segurança e
de suas famílias sem ter que sofrer com a pressão de ter que garantir o repasse
de determinados conteúdos de forma insana.
[1] O que denomino de
“Enciclopedista” é uma perspectiva epistêmica de que o conhecimento humano é um
patrimônio imutável é que pode ser catalogado de modo a ser acessado
oportunamente e esta capacidade de acesso é compreendida como capacidade
cognoscente. Esta perspectiva é fruto do movimento filosófico-cultural
originado do iluminismo, desenvolvido na França por Diderot e d'Alembert, que,
a partir dos novos princípios da razão, pretendiam catalogar todo o
conhecimento humano na Encyclopédie, uma obra monumental composta de 35
volumes.
[2]
Diz-se propedêutico o
ensino cujo objetivo é restrito ao caráter preparatório para níveis mais
elevados, sem um fim em si próprio.