terça-feira, 15 de junho de 2021

ALGUMAS NOTAS SOBRE CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK

Por: José dos Santos Souza


Fonte: Oliver (2016)
      O Funk é bastante discriminado e talvez por isso, muita gente sequer pensa sobre o que é o Funk e sobre sua representação cultural no país. Quando eu ainda estava na graduação, e olha que isso tem tempo e lá vai fumaça, o Funk já era bastante disseminado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Foi nessa época que eu tive acesso a uma dissertação de mestrado cujo título era “O mundo funk carioca”, de Hermano Vianna, mais tarde publicada em livro pela Editora Zahar. Este livro foi determinante para a superação de meus preconceitos acerca desse gênero musical e penso que todo carioca deveria lê-lo – pena que hoje este livro esteja esgotado e custe muito caro nos sebos virtuais. Mas o fato é que precisamos reconhecer o funk como mais um gênero musical dentre tantos outros existente no país e que caíram no gosto popular. Suas origens datam dos anos 1960, quando músicos negros norte-americanos introduziram um tipo de música com ritmos sincopados e em compasso binário que era expressivo da cultura das comunidades negras estadunidenses ou comunidades afro-americanas, como são chamados. Nascia então mais um gênero musical que se caracterizava como uma nova forma de música rítmica e dançante através da mistura de outros gêneros musicais como o soul, o jazz e  o rhythm and blues. Naturalmente, o Funk sofreu muitas transformações com o passar dos anos, mas jamais perdeu suas características principais de um gênero musical dançante de expressão fortemente marcado pela realidade de exclusão social dos segmentos populacionais negros, pobres e residentes em periferias urbanas.

        Apesar dessas características, o Funk adentrou o Brasil, no final dos anos 1970, pela Zona Sul do Rio de Janeiro, área nobre da cidade, onde ocorreram os primeiros bailes funk. O “Canecão”, onde aconteciam shows desse gênero, foi fundamental para sua popularização e propagação pelos subúrbios cariocas. Sua assimilação pela população negra, pobre e residente de periferia foi instantânea, de modo que no final da década de 1970, o Funk era notícia na imprensa, o que contribuiu para sua propagação por todo o país como um gênero musical, embora nos anos 1980 ainda sofresse muita influência da cultura norte-americana, a ponto de nessa década predominar no país o Miami bass, um subgênero do funk estadunidense, com letras em inglês. Mas isto começa a mudar no final da década de 1980, com o DJ Marlboro. Foi ele quem introduziu a bateria eletrônica no gênero musical, recurso esse que perdura até os dias atuais e que hoje caracteriza este gênero musical em todo o país. Quando o DJ Marlboro lança seu primeiro disco, o “Funk Brasil”, deslanchou no país um conjunto cada vez maior de produções inteiramente nacionais, com características próprias desde a batida até as letras das músicas. Assim, o Funk se consolida de uma vez por todas como gênero musical de caráter popular no país.

Fonte: Oliver (2016)

        Obviamente, com sua popularização, a passagem do Funk para produto cultural de consumo em massa foi um passo muito curto. Hoje o Funk é um gênero musical que movimenta muitos milhões de reais na indústria cultural do país. Para se ter uma ideia do quão lucrativo é o mercado desse segmento da indústria cultural, o principal canal do Youtube do gênero possui 36 milhões de inscritos!

        Hoje o Brasil conta com inúmeras variações do Funk, como por exemplo: o Funk Carioca, o Funk Ostentação (Paulista), Funk Consciente, o Funk Pop e o Funk Proibidão. Em todos eles se percebe o fato de que o Funk tem se caracterizado no Brasil como um gênero musical que desafia velhos tabus, ao mesmo tempo em que se transforma e se torna representativo de inúmeros públicos que se assemelham por sua condição de excluído.

        Além de o Funk mobilizar inúmeras expressões que este público demanda, é notória sua capacidade de renovação, sempre se atualizando e inovando em suas batidas e temáticas abordadas, tornando-se representativo de inúmeros segmentos sociais, tais como os negros, os pobres, os favelados, as mulheres, LGBTIQ+, enfim, os excluídos. Também faz parte deste processo de transformação do Funk no Brasil as polêmicas que o envolvem, como por exemplo: a sensualização da dança do Funk, a erotização infantil, o conteúdo ofensivo à mulher contido nas letras das músicas, a extravagância do vestuário típico dos fanqueiros e fanqueiras... Entretanto, a meu ver, polêmicas não muito diferentes das que enfrentam ou enfrentaram outros gêneros musicais ao longo da história e que hoje são também vivenciadas pelo mundo Funk. Mas o que é bastante evidente é o preconceito atribuído a este gênero musical por ele ser uma das formas de expressão musical dos pretos, pobres e favelados.

Fonte: Oliver (2016)

        É fato que o Funk não nasceu nas favelas, mas na área nobre da cidade, a Zona Sul do Rio de Janeiro. Na realidade, o Funk foi assimilado pelas populações faveladas e por elas transformado, ressignificado, alcançando inúmeras variáveis do mesmo gênero musical. Contudo, eu estou convencido de que uma das razões de o Funk sofrer tanta perseguição, apesar de ter se tornado um dos produtos culturais mais rentáveis do país, competindo com o sertanejo, o forró e o pagode, é o fato de o Funk ser o gênero musical mais relacionado à população negra, pobre e residente nas periferias urbanas. Não tenho dúvida disso.

        Não é a primeira vez na história do país que a música desse segmento populacional é discriminada e suas manifestações culturais que a envolvem são criminalizadas. O maxixe e o choro, que deram origem ao samba, sofreram este tipo de descriminalização no final do século XIX e início do século XX, assim como o samba sofreu na primeira metade do século XX. A história nos mostra que a música, a dança e todas as formas de expressão cultural dos pretos e dos pobres sempre incomodaram os segmentos mais elitizados da sociedade, que reagem tentando criminalizar tais manifestações com o intuito de sufocá-las.

        No ano de 2017, um Projeto de Lei de autoria do empresário Marcelo Alonso, que classifica o gênero musical como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à família, atingiu 20 mil assinaturas! Este número foi suficiente para seu encaminhamento para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, o que levou o tema ao debate pelos senadores. Na minha opinião, só o fato de este Projeto de Lei ter sido debatido em uma Comissão do Senado já é indecente por si só. Ainda bem que predominou a sensatez e o famigerado Projeto de Lei não foi adiante por ser considerado inconstitucional.

        Ainda hoje há aqueles que relacionam os bailes funk ao tráfico de drogas. É uma visão bastante rasteira compreender o Funk como gênero musical dominado pelos traficantes, como expressão dos criminosos, como objeto de ação coercitiva do Estado, como tantos defendem. Acho esse tipo de visão uma expressão da falta de conhecimento e de tolerância à diversidade de expressões culturais. Uma espécie de negacionismo no campo cultural. Não creio que este tipo de argumentação seja justo, afinal, o que acontece dentro de uma comunidade em que é notório o abandono do Estado, deixando sua população entregue à própria sorte, é que os segmentos mais bem favorecidos da sociedade, com o intuito de se diferenciar dos mais pobres, passam a considerar criminosos em potencial todo aquele que tem cor de pele preta ou que mora nas periferias da cidade. Na condição de abandonados pelo Estado e humilhados pelo restante da sociedade, é natural que estes segmentos populacionais sejam obrigados a viver segregados em suas comunidades, convivendo com o tráfico de drogas que ocupa as lacunas deixadas pelo Estado e passam a exercer seu poder sobre a população favelada, impondo suas leis, sua ética e sua moral. A população desses espaços não tem alternativa, senão aprender a sobreviver nesse contexto, o que não significa que o aceite como opção de vida.

        O Funk, como qualquer outro gênero musical, é expressão dessa sobrevivência. Por que o Funk deveria expressar outra coisa além disso? À propósito, a concepção de mundo contida no Funk, obviamente, expressa todas as contradições, resistências, mas também as conformações de uma sociedade desigual, excludente, submetida a condições precárias de trabalho e de vida social. O Funk é, portanto, um gênero musical como qualquer outro, com todas as contradições que isto implica. Ser tocado nos bailes promovidos pelo tráfico de drogas em uma favela precisa ser interpretado para além de nossa moralidade hipócrita e reconhecer que este tipo de manifestação cultural nas favelas muitas vezes é a única opção de lazer para os jovens dessas comunidades nos momentos de folga de sua busca por sobrevivência em uma sociedade sem empregos e sem oportunidades para os que vivem nas condições de abandono em que eles vivem. Pensar que todos eles são bandidos e vinculados ao tráfico de drogas é de uma estupidez analítica inaceitável. Inclusive, fosse qual fosse o gênero musical tocado nestes bailes, não só o Funk, mas o samba, o forró, o pagode ou outros gêneros musicais presentes nas favelas e em outras periferias urbanas do país, ainda assim os frequentadores seriam taxados de bandidos.

        Enfim, é claro que por ser um gênero musical produzido pelos pretos, pobres e favelados para os pretos, pobres e favelados, a despeito de ter se tornado um produto cultural altamente rentável, o Funk não deixa de ser um dos mais discriminados, perseguidos e criminalizados patrimônios culturais do país.


Bibliografia:

OLIVER, Magno. 7 realidades que você só descobre visitando um baile funk na favela. Fatos Desconhecidos, em 29/08/2016. Disponível em: https://www.fatosdesconhecidos.com.br/7-realidades-que-voce-so-descobre-visitando-um-baile-funk-na-favela/ , acesso em 16/06/2021.

POLITIZE. Como o funk surgiu no Brasil e quais são suas principais polêmicas? Publicado em 3 de agosto de 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/funk-no-brasil-e-polemicas/ , acesso em 12/04/2021.

VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.