quinta-feira, 20 de março de 2014

IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DO EXTERMÍNIO DA POPULAÇÃO NEGRA TRABALHADORA POBRE E REAÇÃO POPULAR

José dos Santos Souza


       Tem sido frequente a presença na mídia do 9º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, situado em Rocha Miranda, Zona Norte da cidade, em função da ação desastrosa de seus policiais em diversas circunstâncias. Em uma rápida consulta às notícias dos últimos dias, chamou-me a atenção cinco episódios, os quais citarei rapidamente, para posteriormente tecer alguns comentários sobre a ação do 9º BPM na Zona Norte do Rio de Janeiro e suas implicações políticas.
Em 16/10/2010, Wesley Guilber Rodrigues de Andrade, de 11 anos, foi morto em sala de aula em um CIEP Rubens Gomes, em Costa Barros, na Zona Norte do Rio de Janeiro, quando policiais do 9º Batalhão da Política Militar do Rio de Janeiro (9º BPM) faziam uma operação nas favelas próximas à escola. O menino cursava o 5º ano do ensino fundamental e na sala de aula onde ele se encontrava quando foi baleado havia cerca de 30 alunos. Na operação desastrosa, outras cinco pessoas foram baleadas e mortas, das quais pelo menos um delas não tinha relação com a criminalidade.
Em 29/07/2013, Vítor Moura dos Santos, de 18 anos, foi executado por policiais do 9º BPM. A execução ocorreu em Colégio, Zona Norte do Rio de Janeiro, quando o jovem saía de casa pilotando uma motocicleta emprestada por um amigo. Como não tinha carteira de habilitação, o jovem não atendeu à ordem de parar dos policiais, que reagiram atirando. O jovem caiu a 500 metros de sua casa e morreu. Mesmo assim, os policiais dispararam mais tiros e moradores contam que um dos policiais saiu da cena e voltou pouco tempo depois com uma sacola, onde havia uma arma, e colocou em cima do corpo. A família não foi informada da morte do rapaz e o pai da vítima afirma que depois de matarem seu filho, ainda roubaram seu celular e deram sumiço em sua carteira de identidade para dificultar a identificação e atrasar que a história fosse descoberta.
Em 10/02/2014, Gleberson Nascimento Alves, de 28 anos, e Alan de Souza Pereira, de 20, foram mortos por policiais do 9º BPM, quando desciam a favela onde moravam para comprar peças de motocicleta, em Rocha Miranda, Zona Norte do Rio de Janeiro. De acordo com as investigações, os policiais julgaram ser um fuzil a balança de motocicleta que os jovens transportavam e iniciaram uma perseguição, efetuando disparos, antes mesmo de fazer qualquer abordagem para se certificarem se eram ou não criminosos. Quando perceberam o erro, os policiais “plantaram” uma arma de fogo na mão direita de um dos rapazes mortos – entretanto, testemunhas garantem que esse rapaz era canhoto. Como a cena foi gravada com câmeras de celular, ficou claro para a Política Civil que os rapazes estavam desarmados e o caso ganhou repercussão na mídia.
Um dos policiais envolvidos nessas duas ocorrências, o Cabo PM Adilson Batista dos Reis, já vinha sendo investigado pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil por matar o motociclista Vítor Moura dos Santos, em julho do ano passado, embora não tenha sido afastado pela corporação em função do crime, apesar das acusações da família de que o jovem havia sido executado pelos policiais e testemunhas afirmarem que uma arma foi plantada em suas mãos. Somente sete meses depois, diante da repercussão do caso ocorrido em fevereiro de 2014, a Polícia Militar decidiu que Adilson Batista dos Reis deveria ficar longe das ruas.  O pai do jovem morto em julho do ano passado argumenta que “se a PM tivesse tirado o cabo das ruas, talvez os jovens mortos, em Rocha Miranda, estivessem vivos — disse Diógenes”.
Revoltados, moradores da comunidade Bateau Mouche, onde moravam os dois jovens assassinados pelos policiais do 9º BPM, no dia seguinte à morte dos jovens, fizeram várias manifestações na Praça Seca, Zona Oeste do Rio. Os moradores atearam fogo em dois ônibus, em uma retroescavadeira utilizada nas obras do BRT e em um banheiro químico, além de depredarem uma viatura da PM.
Em 23/02/2014, o estudante Fabiano Braga, de 17 anos, morreu durante uma abordagem de quatro policiais do 9º BPM, em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio de Janeiro, quando voltava de moto de uma festa, acompanhado de um amigo. Segundo esse amigo da vítima, após perseguição dos policiais, foram abordados e obrigados a descer da moto e a encostarem-se à mesa de sinuca de um bar que estava fechado, quando os policiais iniciaram a sessão de espancamento com socos e coronhadas, até que o jovem Fabiano caiu desacordado. Os policiais ainda chegaram a rasgar o pneu da motocicleta com uma faca. Os jovens foram levados para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Madureira, mas Fabiano chegou morto ao local. 
Em 16/03/2014, policiais do 9º BPM atiraram contra Cláudia da Silva Ferreira, de 38 anos, quando havia acabado de sair de casa, por volta das 8h, para comprar pão. Era um grupo de quatro ou cinco policiais que realizavam uma operação na comunidade do Morro da Congonha, em Madureira, Zona Norte da cidade. Depois de ter sido baleada, a auxiliar de serviços gerais foi colocada pelos policiais militares no porta-malas de uma viatura, que se abriu no trajeto até o Hospital Estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes. Presa ao porta-malas, ela foi arrastada por mais de 300 metros. A cena foi filmada por um cinegrafista amador e o caso ganhou repercussão na mídia nacional. A vítima era casada há 20 anos, trabalhava como auxiliar de serviços gerais em uma empresa terceirizada no Hospital Marcílio Dias, tinha quatro filhos, cuidava de mais quatro sobrinhos e residia no bairro desde que nasceu.
 Revoltados com a morte de Claudia, os moradores do Morro da Congonha interditaram a Avenida Ministro Edgard Romero, a principal de Madureira, e mais tarde atearam fogo em dois ônibus e apedrejaram uma viatura da PM. No dia seguinte, as manifestações tiveram continuidade com cerca de cem pessoas que interditaram novamente principal via de Madureira, carregando faixas pretas e com críticas à PM.
Pode-se perceber que, em todos esses episódios, as vítimas são pessoas pobres, negras, residentes em comunidades ou bairros pobres da Zona Norte do Rio de Janeiro, sem antecedentes criminais, a maioria jovens trabalhadores ou estudantes. Essas vítimas frequentemente são reconhecidas pelos policiais como criminosos potenciais e, com base neste preconceito, são executadas friamente, espancadas ou presas e, quando mortos, seus cadáveres são tratados como lixo. Para justificar sua ação, os policiais militares envolvidos – nesses casos, todos pertencentes ao 9º BPM – costumam forjar flagrantes, plantar armas junto ao corpo das vítimas ou apontar ocorrência de troca de tiros, de reação à prisão ou qualquer outro argumento que justifique o registro das ocorrências como “autos de resistência”, eximindo-os de culpa ou responsabilidade pelas mortes decorrentes destas ações policiais.
Dos dois subtenentes e um sargento, apenas este último não está envolvido em algum dos chamados “autos de resistência". O subtenente Adir Serrano Machado tem envolvimento em 57 registros de autos de resistência, com 63 mortos. O subtenente Rodney Miguel Archanjo tem envolvimento em cinco ocorrências, com seis mortos. Isto significa que pelo menos 69 pessoas morreram em supostos tiroteios dos quais esses dois subtenentes participaram desde 2000. Seria interessante saber se essas pessoas eram negras, pobres e residentes em comunidades ou bairros de periferia da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
Esse tipo de ação policial não é característico apenas do 9º BPM, lamentavelmente, tampouco está circunscrito à ação policial militar do estado do Rio de Janeiro. Esses episódios mencionados aqui também não são os únicos desse batalhão. Infelizmente, esse tipo de ação vem ocorrendo há muitos anos em todo o território nacional. Além de negros, muitos outros segmentos populacionais são vitimas de extermínio via ação policial como, por exemplo, os jovens afrodescendentes de periferias urbanas. Entretanto, os episódios citados aqui apresentam elementos novos que merecem atenção. Tratam-se das manifestações das comunidades em que as vítimas estão inseridas. Se antes essas ocorrências passavam despercebidas do resto da população, sem qualquer envolvimento ou comoção, hoje, esses episódios ganham espaço na mídia, quase sempre pressionados pelas denúncias feitas pelos próprios cidadãos, por meio de registro de imagens e discursos compartilhados via internet. Esse novo incremento de comunicação, normalmente, tem mobilizado alguns segmentos populacionais a se manifestarem contra as injustiças e a violência. Na maioria das vezes, essas ações se dão em forma de bloqueio de vias públicas, incêndio de ônibus ou viaturas policiais, depredação de bens públicos e enfrentamento direto às forças policiais.
Pelo menos aparentemente, essas manifestações ocorrem sem que haja qualquer organização prévia por parte de algum tipo de entidade ou mesmo grupo organizado. Por outro lado, elas contam com a anuência de muitos cidadãos, sejam eles moradores daquela comunidade ou não, o que demonstra um forte potencial de consenso no segmento populacional que de alguma forma se identifica com as reivindicações e anseios expressos nessas manifestações. É recorrente também a mobilização de algumas organizações da sociedade civil que, mesmo a reboque dessas manifestações, também encampam suas reivindicações, conferindo-lhes maior institucionalidade e ampliando sua capacidade de penetração em espaços muito além daqueles que os próprios manifestantes possam imaginar, como por exemplo, o caso do sumiço do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em julho de 2013, que funcionou como forte incremento às mobilizações que já se desarrolhavam desde o mês de junho de 2013.
É evidente que o avanço das tecnologias da informação e da comunicação também tem contribuído significativamente para que essas manifestações aglutinem apoio. Isso se deve não apenas pelo fato de os meios de comunicação de massa terem adquirido maior capacidade para processar informação e comunicá-las mais rapidamente – muitas vezes em tempo real, para uma quantidade cada vez maior de receptores –, mas também pelo fato de que os próprios cidadãos podem, hoje, eles mesmos processar a notícia, utilizando-se de equipamentos relativamente simples, como o aparelho celular, e tonar essa notícia pública com maior rapidez do que as empresas de jornalismo, bastando para isso compartilhar imagens e mensagens capturadas pelo aparelho celular com as diversas redes sociais por meio da internet. O próprio trabalho jornalístico de algumas rádios e emissoras de televisão está se transformando em programas interativos, onde seus ouvites e telespectadores atuam voluntariamente como verdadeiros repórteres, estabelecendo nova dinâmica de edição ao noticiário – vide, por exemplo, as notícias de trânsito veiculadas por programas de rádio em que os próprios ouvintes informam locais de acidentes e condições de tráfego, o mesmo ocorrendo com alguns aplicativos de tablets e smartphones.
Esse potencial comunicativo não só amplia a capacidade de denúncia e reivindicação dos cidadãos, como também amplia seu poder de pressão junto às autoridades, aos órgãos públicos. Além disso, essa nova realidade propiciada pelo avanço tecnológico também torna mais evidente as contradições inerentes à sociabilidade do capital. É inegável que essa nova realidade impõe ao Estado a necessidade de reconfiguração de seus mecanismos de mediação do conflito de classes, obrigando-o a reformular suas estratégias de construção do consenso em torno da concepção de mundo dominante e, assim, continuar exercendo seu papel pedagógico de educar as massas e manter a hegemonia.
No caso da segurança pública, de modo particular, a democracia, a imparcialidade do sistema judiciário e a equidade de tratamento dos cidadãos pela polícia estão em xeque, da mesma forma que também estão em xeque as ações governamentais para conter a violência no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Se antes as contradições que permeavam a justiça e a ação policial estavam apenas no campo abstrato, hoje, elas são evidenciadas por posts no Facebook por meio de vídeos, fotos e discursos, muitas vezes de autoria dos próprios sujeitos vitimados ou de seus amigos e familiares. Entretanto, esse novo poder tem sido muitas vezes negligenciado tanto pelo Estado e o empresariado, como também pelos partidos políticos e demais organizações da sociedade civil organizada. Esse poder emana do simples fato de que se antes as contradições da política de segurança ficavam resguardados no campo da abstração, hoje elas estão materializados pelas diferentes mídias, acionadas por diferentes sujeitos, sejam eles profissionais ou leigos, criando formas inusitadas de mobilização, de organização e de luta por parte dos excluídos.
É inegável também que, por outro lado, o Estado e seus aparelhos privados de hegemonia também incorporam em sua pedagogia política os avanços da tecnologia da informação e da comunicação, redimensionando seu discurso e suas ações de mediação do conflito de classes, dando nova dinâmica a sua ação de construção do consenso na sociedade de classes. Nesse movimento, muitas vezes, incorpora demandas concretas das camadas subalternas da sociedade, fortalecendo a ilusão de que estão sendo ampliados os mecanismos de controle social sobre as decisões estatais e que a maior participação popular propiciada pelo uso das tecnologias da informação e da comunicação só tornam esse controle ainda mais eficaz. Esse discurso, entretanto, só camufla o conflito inerente à sociabilidade burguesa, ao fazer predominar a ideia de parceria solidária entre cidadãos de diferentes segmentos sociais, indistintamente de suas condições de classe. A propósito, a própria diferença de classe é reduzida à ideia de diversidade cultural que merece ser respeitada, preservada e exaltada, inaugurando uma nova dinâmica de pacto social tão mais complexo quanto instável. Nessas condições, para a conformar as camadas subalternas na concepção de mundo burguesa a ação estatal exige prescinde de novos mecanismos de mediação do conflito, mais eficazes frente a um contexto tão dinâmico e com maior participação popular. Para tornar essa participação tão alienada como antes, indubitavelmente, exige-se do Estado e de seus aparelhos privados de hegemonia maior desenvoltura para manter acesa a ilusão de que a sociabilidade burguesa se assenta em bases democráticas, livres e fraternas.
Esses episódios mencionados e as manifestações deles decorrentes têm em comum o potencial de nos fazer refletir se, diante de uma sociedade mais informada e com sujeitos com plenos poderes para gerar e gerir suas próprias informações, até onde o Estado e seus aparelhos privados de hegemonia conseguirão fazer prevalecer sua pedagogia política? Talvez mais relevante que isso seria saber até onde os segmentos mais precarizados da população, por meio do uso das tecnologias da informação e da comunicação, poderão manifestar-se e, a partir dessas manifestações, refletir sobre as condições concretas em que vivem e se organizar? Enfim, até que ponto essas manifestações podem contribuir para que as classes subalternas construam uma ação contra hegemônica?
Independente das respostas a essas questões, uma coisa é certa: a experiência vivida pelos parentes das vítimas e seus vizinhos, uma vez comunicadas ao restante da população, causam forte comoção e marcam suas vidas na medida em que significam a concreticidade das contradições da sociabilidade burguesa em suas vidas cotidianas. Que ironia. À medida que o capitalismo avança e, inevitavelmente, esse avanço desenvolve a classe trabalhadora, é inevitável também que suas mazelas fiquem cada vez mais expostas. Isto significa que, para a população da Zona Norte do Rio de Janeiro, pelo menos nesse momento, a promessa integradora do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal combinado com suas políticas de renda mínima, bem como o movimento pacificador das UPPs no Rio de Janeiro, têm suas reais intenções evidenciadas e seu poder político e ideológico prejudicado.