Por: José dos Santos Souza
Fonte: Oliver (2016) |
Apesar dessas características, o Funk adentrou o Brasil, no
final dos anos 1970, pela Zona Sul do Rio de Janeiro, área nobre da cidade,
onde ocorreram os primeiros bailes funk. O “Canecão”, onde aconteciam shows
desse gênero, foi fundamental para sua popularização e propagação pelos
subúrbios cariocas. Sua assimilação pela população negra, pobre e residente de
periferia foi instantânea, de modo que no final da década de 1970, o Funk era
notícia na imprensa, o que contribuiu para sua propagação por todo o país como
um gênero musical, embora nos anos 1980 ainda sofresse muita influência da
cultura norte-americana, a ponto de nessa década predominar no país o Miami
bass, um subgênero do funk estadunidense, com letras em inglês. Mas isto começa
a mudar no final da década de 1980, com o DJ Marlboro. Foi ele quem introduziu
a bateria eletrônica no gênero musical, recurso esse que perdura até os dias
atuais e que hoje caracteriza este gênero musical em todo o país. Quando o DJ
Marlboro lança seu primeiro disco, o “Funk Brasil”, deslanchou no país um
conjunto cada vez maior de produções inteiramente nacionais, com
características próprias desde a batida até as letras das músicas. Assim, o
Funk se consolida de uma vez por todas como gênero musical de caráter popular
no país.
Fonte: Oliver (2016) |
Obviamente, com sua popularização, a passagem do Funk para
produto cultural de consumo em massa foi um passo muito curto. Hoje o Funk é um
gênero musical que movimenta muitos milhões de reais na indústria cultural do
país. Para se ter uma ideia do quão lucrativo é o mercado desse segmento da
indústria cultural, o principal canal do Youtube do gênero possui 36 milhões de
inscritos!
Hoje o Brasil conta com inúmeras variações do Funk, como
por exemplo: o Funk Carioca, o Funk Ostentação (Paulista), Funk Consciente, o
Funk Pop e o Funk Proibidão. Em todos eles se percebe o fato de que o Funk tem
se caracterizado no Brasil como um gênero musical que desafia velhos tabus, ao
mesmo tempo em que se transforma e se torna representativo de inúmeros públicos
que se assemelham por sua condição de excluído.
Além de o Funk mobilizar inúmeras expressões que este
público demanda, é notória sua capacidade de renovação, sempre se atualizando
e inovando em suas batidas e temáticas abordadas, tornando-se representativo de
inúmeros segmentos sociais, tais como os negros, os pobres, os favelados, as
mulheres, LGBTIQ+, enfim, os excluídos. Também faz parte deste processo de
transformação do Funk no Brasil as polêmicas que o envolvem, como por exemplo:
a sensualização da dança do Funk, a erotização infantil, o conteúdo ofensivo à
mulher contido nas letras das músicas, a extravagância do vestuário típico dos fanqueiros e
fanqueiras... Entretanto, a meu ver, polêmicas não muito diferentes das que
enfrentam ou enfrentaram outros gêneros musicais ao longo da história e que hoje são
também vivenciadas pelo mundo Funk. Mas o que é bastante evidente é o
preconceito atribuído a este gênero musical por ele ser uma das formas de
expressão musical dos pretos, pobres e favelados.
Fonte: Oliver (2016) |
É fato que o Funk não nasceu nas favelas, mas na área nobre
da cidade, a Zona Sul do Rio de Janeiro. Na realidade, o Funk foi assimilado
pelas populações faveladas e por elas transformado, ressignificado, alcançando
inúmeras variáveis do mesmo gênero musical. Contudo, eu estou convencido de que
uma das razões de o Funk sofrer tanta perseguição, apesar de ter se tornado um
dos produtos culturais mais rentáveis do país, competindo com o sertanejo, o
forró e o pagode, é o fato de o Funk ser o gênero musical mais relacionado à
população negra, pobre e residente nas periferias urbanas. Não tenho dúvida
disso.
Não é a primeira vez na história do país que a música desse
segmento populacional é discriminada e suas manifestações culturais que a envolvem são criminalizadas. O maxixe e o choro,
que deram origem ao samba, sofreram este tipo de descriminalização no final do
século XIX e início do século XX, assim como o samba sofreu na primeira metade
do século XX. A história nos mostra que a música, a dança e todas as formas de
expressão cultural dos pretos e dos pobres sempre incomodaram os segmentos mais
elitizados da sociedade, que reagem tentando criminalizar tais manifestações
com o intuito de sufocá-las.
No ano de 2017, um Projeto de Lei de autoria do empresário
Marcelo Alonso, que classifica o gênero musical como crime de saúde pública à
criança, ao adolescente e à família, atingiu 20 mil assinaturas! Este número
foi suficiente para seu encaminhamento para a Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa, o que levou o tema ao debate pelos senadores. Na
minha opinião, só o fato de este Projeto de Lei ter sido debatido em uma
Comissão do Senado já é indecente por si só. Ainda bem que predominou a
sensatez e o famigerado Projeto de Lei não foi adiante por ser considerado
inconstitucional.
Ainda hoje há aqueles que relacionam os bailes funk ao tráfico de drogas. É uma visão bastante rasteira compreender o Funk como gênero musical dominado pelos traficantes, como expressão dos criminosos, como objeto de ação coercitiva do Estado, como tantos defendem. Acho esse tipo de visão uma expressão da falta de conhecimento e de tolerância à diversidade de expressões culturais. Uma espécie de negacionismo no campo cultural. Não creio que este tipo de argumentação seja justo, afinal, o que acontece dentro de uma comunidade em que é notório o abandono do Estado, deixando sua população entregue à própria sorte, é que os segmentos mais bem favorecidos da sociedade, com o intuito de se diferenciar dos mais pobres, passam a considerar criminosos em potencial todo aquele que tem cor de pele preta ou que mora nas periferias da cidade. Na condição de abandonados pelo Estado e humilhados pelo restante da sociedade, é natural que estes segmentos populacionais sejam obrigados a viver segregados em suas comunidades, convivendo com o tráfico de drogas que ocupa as lacunas deixadas pelo Estado e passam a exercer seu poder sobre a população favelada, impondo suas leis, sua ética e sua moral. A população desses espaços não tem alternativa, senão aprender a sobreviver nesse contexto, o que não significa que o aceite como opção de vida.
O Funk, como qualquer outro gênero musical, é expressão dessa
sobrevivência. Por que o Funk deveria expressar outra coisa além disso? À
propósito, a concepção de mundo contida no Funk, obviamente, expressa todas as
contradições, resistências, mas também as conformações de uma sociedade
desigual, excludente, submetida a condições precárias de trabalho e de vida
social. O Funk é, portanto, um gênero musical como qualquer outro, com todas as
contradições que isto implica. Ser tocado nos bailes promovidos pelo tráfico de
drogas em uma favela precisa ser interpretado para além de nossa moralidade
hipócrita e reconhecer que este tipo de manifestação cultural nas favelas
muitas vezes é a única opção de lazer para os jovens dessas comunidades nos
momentos de folga de sua busca por sobrevivência em uma sociedade sem empregos
e sem oportunidades para os que vivem nas condições de abandono em que eles
vivem. Pensar que todos eles são bandidos e vinculados ao tráfico de drogas é
de uma estupidez analítica inaceitável. Inclusive, fosse qual fosse o gênero
musical tocado nestes bailes, não só o Funk, mas o samba, o forró, o pagode ou outros gêneros musicais presentes nas favelas e em outras periferias urbanas do
país, ainda assim os frequentadores seriam taxados de bandidos.
Enfim, é claro que por ser um gênero musical produzido
pelos pretos, pobres e favelados para os pretos, pobres e favelados, a despeito
de ter se tornado um produto cultural altamente rentável, o Funk não deixa de
ser um dos mais discriminados, perseguidos e criminalizados patrimônios culturais do país.
Bibliografia: